“A senhora está me dizendo que eu preciso morrer para não morrer?”. Essa fala poderia definir muito bem o cerne da problemática que somos apresentados em ‘Vitória’, filme que marca o fim da "grande dama da dramaturgia brasileira", Fernanda Montenegro, nos cinemas. Mas acredito que minimizar a obra somente a esse aspecto é injusto, porque vai muito além disso. O longa é sublime nas entrelinhas, no detalhe, no silêncio do olhar que diz tudo e na sonoplastia como ferramenta de empatia narrativa.
Com a direção assinada por Andrucha Waddington (Sob Pressão), o filme é baseado em uma história real, onde nos apresenta Nina, uma mulher que expôs toda uma rede de tráfico e violência no Rio de Janeiro.
A personagem que Montenegro traz à vida, se chamava Joana da Paz na vida real, mas sua identidade só foi revelada em 2023 após falecer, quando o filme já estava gravado. Cansada de viver amedrontada pelos tiroteios e balas perdidas em meio ao crime organizado da comunidade vizinha e contatos ineficazes com a polícia, ela decide comprar uma filmadora e registrar as provas por conta própria.
Entre as indas e vindas de vários contatos com setores da segurança pública, as fitas acabam nas mãos do jornalista Fábio Godoy (Fábio Gusmão na vida real, vivido por Alan Rocha), que representa ali o ideal de um jornalista humano: ouvindo, correndo atrás, colaborando com empatia e cuidado para que a violência fosse finalmente exposta. Mas para que a investigação acontecesse, Nina precisava entrar no Programa de Proteção a Testemunha, mudando de casa e nome pelo o resto da vida.
Montenegro é a alma do filme. Os três atos são praticamente todos centrados ao redor de sua personagem, destrinchando o seu íntimo, os talheres, as lembranças, o lar, a perspectiva dela sobre o próprio mundo.
Uma solução muito eficaz que a produção encontrou para mostrar as fitas originais de 2005 ao telespectador sem ser expositivo foi apresentá-los no mesmo momento que um personagem os vê pela primeira vez, inserindo de forma orgânica, agregando a história sem subestimar a audiência.
Os personagens de apoio são adições aconchegantes. Bibiana vivida por Lin da Quebrada) e ‘Marcinho’ interpretado por Thawan Lucas, na época com apenas 12 anos são personagens que trazem afago e acolhimento em certa medida.
Vitória é um brilho nos olhos para a sétima arte brasileira. É pura arte quando subverte o entretenimento puramente dito, que é exigido pela rapidez que o mundo contemporâneo espera. É uma obra contemplativa, imersiva e viva. Uma problemática de 20 anos atrás que poderia facilmente ser uma manchete rotineira do jornal de amanhã.